Não, não apague minhas cores com as tuas dores.


Caiou o dia. E não foi de branco.
Era tanta falta de clareza que naquela manhã até a tinta escureceu. Pincéis encharcados de intransigência se arrastaram pelas paredes, em um traçado nervoso e descoordenado. Foi difícil confiar nos olhos e aceitar que o arco-íris tinha sumido debaixo do véu cinzento do autoritarismo. Nem os vermelhos mais indignados resistiram à escuridão. Naquele momento a atrocidade paralisou a arte, a poesia virou concreto.
Nós já ouvimos a canção.
As palavras do profeta também viraram cinzas, um dia. A intolerância já foi cantada mais de uma vez e mesmo assim o tempo da gentileza ainda não chegou. Estamos involuindo e o tempo está acabando. De novo o louco anda pelas ruas, mas esse não semeia o amor. É o antiprofeta, o pregador da censura, o senhor das praças públicas. O cara que não enxerga um traço à frente e sofre de miopia retroativa.
Para ele não ficou mesmo nenhum ensinamento. As paredes podem até parecer limpas, só que o pior problema continua ali, deitado eternamente em chão nada esplendido.
Nem tudo são cores, sei bem disso.
Ninguém disse que é para carregar nas tintas. Falo sobre escolher o tom certo. Afinal, o que seria do tal desenvolvimento sem o cinza cor-de-cimento? Não seria, eu sei. Só não sei de onde saiu esse rolo compressor pronto para estraçalhar a cultura das ruas. Sem essa de “joga fora e faz de novo”. Mais uma vez pesou a demão no desrespeito.
Chega. Estamos cheios de paredes, evoluímos muito bem nisso. Já tem muro demais e eles precisam cair. Passou da hora de construir diálogos. Não é de hoje que a gente tem fome (também) de expressão. Isso me faz lembrar mais uma canção. A arte de rua dá voz ao povo. Escancara as questões sociais, ridiculariza as políticas. Amplia o olhar para o espaço urbano, ajuda a pensar uma cidade melhor e mais linda. Talvez por isso incomode tanto.
Se incomodar, mande cores.
Outro dia eu vi um Pelé beijando Salvador Dalí, bem aqui, no centro de São Paulo. A arte é assim, provoca estranhamento mas também promove encontros, até os mais improváveis.
Eu queria ser um artista de rua, por um bloco na avenida, fazer a chamada arte sem moldura. Me falta o talento mas sobra a vontade. Queria me encontrar mais com a cidade sem que ninguém decidisse o que meus olhos podem ver. Escrever livremente o meu manifesto. Escolher o caminho do meu samba, definir o tempo da minha canção. Espalhar flores, jogar confetes, soltar balões, assobiar. Sem querer incomodar, é que às vezes é preciso gritar para ser ouvido. E para aqueles que estão sempre prontos para despejar as suas dores, vai um aviso: eu aprendi a envernizar as minhas cores.

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